Laboratório, 200 pessoas e cidade cenográfica: como Festa do Peão de Barretos virou fenômeno ao ser ‘protagonista’ da novela ‘América’


Novela da TV Globo exibida em 2005 projetou o maior rodeio da América Latina ao mundo. Na semana que começa a edição 2023 do evento, g1 revisita os bastidores das gravações. Cidade cenográfica construída no Parque do Peão de Barretos
Arquivo pessoal/Marcos Abud
Com 68 anos de existência, a Festa do Peão de Barretos tem a reputação de ser considerada a maior da América Latina e ter virado “o rodeio dos rodeios”, conhecido no Brasil e internacionalmente. Entretanto, um acontecimento em 2005, justamente quando completava cinco décadas, fez o evento – e a cidade no interior de São Paulo – virar ainda mais fenômeno nacional de popularidade.
No Brasil do início dos anos 2000, que vivia apenas o início do auge da internet e das redes sociais, o principal entretenimento do país ainda era a televisão. Através dela, e de uma das maiores paixões da história do brasileiro, a telenovela, a Festa do Peão de Barretos se tornou uma febre ao ser, pela primeira vez, retratada em detalhes.
A responsável por levar Barretos (SP) às televisões de grande parte dos brasileiros foi “América”, que estreou no horário nobre da TV Globo no dia 14 de março de 2005. Escrita por Glória Perez, a trama retratava a luta para conseguir imigrar para os Estados Unidos e o mundo dos rodeios. Maior obsessão de todo peão profissional no Brasil, a festa virou cenário da produção e, mais do que isso, foi “protagonista” ao ser a responsável por ambientar todo o universo country da história.
Imagem da Festa do Peão de Barretos exibida na novela América
Reprodução/Globoplay
Na semana em que começa a edição 2023 da Festa do Peão de Barretos, o g1 publica uma série de reportagens sobre o evento.
Nesta, o portal revisita o ano em que o rodeio virou estrela do horário nobre e, com entrevistas com Marcos Abud e Kaká Santos, que já faziam parte da organização do rodeio à época, relembra os bastidores das gravações, que reuniram três viagens à cidade, um laboratório um ano antes, uma equipe de 200 pessoas e uma cidade cenográfica construída dentro do Parque do Peão. Veja abaixo:
Bastidores das gravações de América em Barretos, em 2005
Ney Macedo/Arquivo pessoal
🤠 Como surgiu a ideia?
De acordo com o Ibope, América teve média geral de audiência de 49 pontos e se tornou a segunda maior repercussão da década de 2000, atrás apenas da antecessora, “Senhora do Destino”. O sucesso fez a novela ser exportada a países como Venezuela, Bolívia, Portugal, Costa Rica e Índia, o que ajuda a explicar melhor a projeção que a produção fez o Rodeio de Barretos ganhar.
Mas, como surge a ideia de retratar o ambiente das festas de peão e de gravar em Barretos? A proposta veio na concepção da sinopse de Glória Perez. A ideia era ter dois protagonistas que se apaixonavam, mas não ficavam juntos por ter objetivos incompatíveis. Sol, defendida por Deborah Secco, sonhava em trilhar uma vida nos Estados Unidos, enquanto que Tião, personagem de Murilo Benício, queria fincar raízes em sua terra e conquistar prestígio e sucesso como peão de rodeio.
É a partir deste momento que o caminho da cidade começa a se cruzar com o da novela. Ao g1, o diretor da Festa do Peão, Marcos Abud, lembrou que o conhecimento sobre o ambiente de rodeios de Jayme Monjardim, diretor de “América” – que depois foi substituído por Marcos Schechtman – aproximou a trama de Barretos.
Deborah Secco e Murilo Benício nas gravações de América em Barretos
Ney Macedo/Arquivo pessoal
O profissional já havia tido contato com o tema quando dirigiu a primeira versão de “Pantanal”, em 1990, e “A história de Ana Raio e Zé Trovão”, de 1991, ambas da extinta TV Manchete e que também tiveram referências à Festa do Peão de Barretos.
“Eu já conhecia o Jayme da época dessas outras novelas, ele tinha bastante noção sobre rodeios, e aí ele me chamou para uma conversa no escritório dele no Rio de Janeiro para me explicar qual era a ideia dele de retratar Barretos em ‘América’. Aí eu tive uma ideia do que seria feito e nós marcamos para a equipe da novela ir até a cidade”, relembrou Abud.
📺 Laboratório, equipe enorme…
A primeira ida a Barretos da equipe da novela, inclusive com a autora Glória Perez, foi durante o rodeio de 2004, em agosto daquele ano, sete meses antes da novela estrear. Neste momento, foi feito “um laboratório” sobre quais poderiam ser as locações, pesquisa de figurinos e captação de imagens. “Minha esposa saiu com as figurinistas e elas viram como as pessoas se vestiam. A ideia dessa primeira viagem foi fazer um estudo mesmo”, completou o diretor.
Três meses depois, em dezembro, desembarcou na cidade uma comitiva para as gravações, que impressionou pelo tamanho. A equipe reunia 200 pessoas, segundo as lembranças de Abud, muitos caminhões com 30 motoristas e boa parte dos atores do elenco da novela, entre eles Murilo Benício, Murilo Rosa e Matheus Nachtergaele, que davam vida a peões, Lúcia Veríssimo e Anderson Muller, que interpretavam locutores de rodeio, além de Deborah Secco, Eliane Giardini, e outros nomes.
Abertura da novela América, da TV Globo, em 2005
Reprodução/Globoplay
A equipe ficou em Barretos gravando ininterruptamente por dez dias. “Eu me lembro que era uma estrutura muito grande. A gente não avisava a população, então não me lembro de ter tantos curiosos, mas mexeu muito com a cidade. É tudo com muito detalhe. Eles trocavam de roupa o tempo inteiro. A equipe ficou hospedada em um hotel fora da cidade, mas era tudo muito programado. Em um intervalo específico de horas, eu tinha que servir um lanche”, lembrou Abud.
🎬 Os bastidores das gravações
A relevância da cidade dentro da novela foi trabalhada de maneira profunda. A trama tinha a fictícia Boiadeiros, onde moravam todos os peões e personagens relacionados aos rodeios. O município, que na história também ficava no interior de São Paulo, tinha uma clara inspiração em Barretos.
Além disso, logo no início, acontece a Festa do Peão de Barretos onde os peões da novela iriam competir. É lá que Tião e Sol se encontram pela primeira vez. Além de usar imagens do rodeio gravadas em 2004, a equipe da novela construiu uma cidade cenográfica dentro do parque do peão, com muitas casas que serviam de cenário.
“Tinha pelo menos uma dez casas de madeira. A cidade não era dentro do estádio, era fora, mas era tudo muito grande. A cidade cenográfica era para dar esse ambiente de festa do peão mesmo, de feira agropecuária, com loja, barraquinha. Eles chegaram a colocar umas bandeirinhas que não combinavam muito com a festa. Eu lembro que falei: é rodeio ou festa junina?”, brincou o diretor.
Tradicional em Barretos, queima do alho apareceu na novela América
Reprodução/GloboPlay
A equipe do clube “Os Independentes”, responsável pela organização da festa do peão, teve participação direta nas gravações de “América” em Barretos. Por todo o conhecimento de rodeios, o manejo dos animais ficava por conta deles, além de parte dos peões terem feito figuração e dos profissionais oferecerem consultoria aos atores e atrizes.
“Eu fui o primeiro comentarista de rodeio no Brasil. Em Barretos, eu funciono como um âncora, apresentando tudo, pelo conhecimento que eu tenho da festa. Então eu conversava com quem ia fazer o papel de locutor, dava dicas”, completou Kaká Santos, comentarista da Festa do Peão de Barretos.
Cena da novela América gravada em Barretos
Reprodução/Globoplay
Os moradores de Barretos também tiveram que, indiretamente, participar das gravações. “Isso tudo foi gravado em dezembro. Ou seja, não tinha rodeio. Então a gente tinha que encher o estádio pra gravar na arena. Aí a gente ia chamando o povo da cidade mesmo. Naquela época não tinha internet direito, era na base do boca a boca”, explicou Marcos Abud.
No rodeio de 2005, já com a novela em processo de finalização, uma equipe reduzida da novela voltou para gravar o final de alguns personagens, completando as três viagens à cidade.
❗ As controvérsias
À época de sua exibição, “América” provocou uma extensa discussão em relação à romantização do uso de animais em rodeios. Organizações protetoras fizeram ataques a autora e à direção, o que acabou também refletindo na Festa do Peão de Barretos.
“A novela retratou uma parte do nosso mundo dos rodeios. Não retratou como um todo porque não tem como. Mas retratou bem, levou o nosso mundo dos rodeios ao mundo, atraiu muita gente, então isso foi muito bom. Mas a novela também atraiu o lado negativo, de gente que já critica muito rodeio, que é um assunto polêmico, mas passou a criticar ainda mais. A relação custo-benefício acabou sendo boa”, pontuou Kaká Santos.
Festa do Peão de Barretos na novela América
Reprodução/Globoplay
🐂 A maior estrela
Ainda que o assunto tenha sido amplamente abordado em muitas reportagens, é impossível falar qualquer coisa relacionada a “América” sem fazer uma menção sequer ao Touro Bandido, que, no Brasil de 2005, certamente era uma das “personalidades” mais conhecidas do país naquele momento. E, mais uma vez, o universo das festas de peão foi fundamental para a construção da história.
O Touro Bandido, que atormentava Tião por não conseguir montar nele, realmente era o rei de todos os rodeios na vida real e derrubava qualquer peão que o desafiava. A novela inclusive recriou a cena que aconteceu em Jaguariúna, em 2001, quando Bandido arremessou Neyliowan Tomazelli a seis metros de altura.
Touro Bandido participou da novela América
TV Globo/Reprodução
Bandido era de propriedade do empresário Paulo Emílio Marques, natural de Barretos. Com uma tonelada, o animal participou de 200 montarias ao redor do Brasil e morreu em 2009, quando ganhou um memorial no Parque do Peão.
“A novela projetou muito ele. Ele virou artista por causa da novela. A novela ajudou a criar esse fenômeno. Esse objeto de desejo. Ninguém conseguia montar nele, era inacreditável”, finalizou Santos.
Deborah Secco na cidade cenográfica construída em Barretos
Reprodução/Globoplay
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