Por Fabiana Guerrelhas
Minha filha é cheia de amigos. Uma moça divertida e querida por muitos. Acabou de fazer dezenove anos e em sua festa de aniversário tinha gente de várias tribos, saindo pelo ladrão. Mas nem sempre foi assim. Quando tinha uns doze ou treze anos ela não quis mais ir à escola, passou a ficar isolada, cabisbaixa e triste a maior parte do tempo.
Estranhamos, pois ela sempre foi animada e comunicativa, a alegria da casa. A princípio pensei ser algo ligado à puberdade ou coisa de hormônio, mas não, ela estava sofrendo bullying. Alguns colegas da sua sala, amigos muito próximos desde pequenos, criaram um grupo super autoritário chamado Clãzinho com regras rígidas de conduta e convivência, cuja desobediência levava a drásticas punições. Ela não aceitou fazer parte do clube e passou a receber diversas retaliações psicológicas.
Demoramos a saber, pois uma das ordens da cúpula do clã era não contar nada aos pais ou aos professores. Porém, numa visita rotineira ao seu celular, descobri todo o esquema. Fiquei chocada com o nível de agressões verbais que ela vinha recebendo e com o jeito grosseiro como eles todos se tratavam. Havia muitos códigos e expressões que eu desconhecia.
Fui imediatamente à escola e entrei em contato com todos os pais do grupo. Fizemos várias reuniões entre nós e com as crianças e a facção mirim foi dissolvida. Helena voltou a sorrir.
Ao assistir à série, “Adolescência”, campeã de audiência da Netflix, fiquei com uma sensação ruim, um aperto no peito, um tipo de dèjavu. Lembrei do que minha filha viveu naquela época. A série conta a história do assassinato de uma menina de treze anos no interior da Inglaterra, com foco na prisão do garoto que cometeu o crime e no inferno que virou a vida de sua família.
São apenas quatro episódios filmados sem corte, o que deixa a trama tensa, intimista e muito suscetível a identificações. Qualquer pai minimamente zeloso morre de pavor de que coisas graves aconteçam aos seus filhos. No meu entender, a qualidade cinematográfica, identificação com os personagens, o medo e a empatia explicam o tamanho do sucesso do programa.
Como psicoterapeuta e mãe de filhas jovens seria difícil a série passar batida por mim. Me aproximei daquelas vivências e mergulhei de cabeça no capítulo da entrevista da psicóloga forense com o menino na cadeia. Nunca tinha visto uma representação tão fiel à realidade.
Pode até parecer um exagero, mas naquelas reuniões sobre o Clãzinho, entre nós adultos e com as crianças, discutimos amplamente sobre assuntos fundamentais na formação do caráter das pessoas como: violência; terrorismo; misoginia; nazismo; fascismo; golpe militar e ditadura; política de incentivo ao ódio; homofobia; racismo e relações sexuais não consentidas.
Conversamos sobre as responsabilidades do adolescente e lembramos que todo comportamento tem consequências legais e afetivas. Passamos por momentos emocionantes, de comprometimento e de tomada de consciência. Choramos, nos acolhemos, aprendemos uns com os outros. Conseguimos cuidar dos nossos filhos, eles entenderam a gravidade da situação, se perdoaram e permaneceram amigos.
Não sou terapeuta infantil, mas atendo adultos que sofreram bullying na infância que carregam sequelas emocionais graves vida afora. Minha filha também mantém algumas. Atendo pais desnorteados, reféns da realização dos desejos de seus nobres filhos, tementes em ter autoridade.
Pais eternamente culpados, absolutamente permissivos, com dificuldades de colocar limites claros. Pais exaustos, imersos em suas atividades diárias e de certa forma confortáveis por suas crianças estarem distraídas e ocupadas com as telas. Pais amorosos e cuidadosos, como os pais do adolescente Jamie.
Essa série é um bom ponto de partida para conversas difíceis, para nos aproximarmos, para as escolas colocarem o assunto na mesa, para termos controle do que nossos filhos fazem no universo digital, para entendermos os fatos do mundo e a vida dos jovens com profundidade.
Outro programa bem interessante sobre o tema é o podcast “Fio da Meada” da Radio Novelo, em que Branca Vianna entrevista a juíza da vara da infância e juventude do Rio de Janeiro, Vanessa Cavalieri.
Saber a respeito dos atos criminosos e violentos de crianças e adolescentes é de tirar o sono, mas para que tenhamos medidas eficientes de proteção na infância é preciso ter contato com a realidade.
O conflito que levou à morte da menina se relaciona a questões de gênero. Essa pauta é absolutamente necessária. Existe uma frase péssima, que já ouvi com freqüência de pais de meninos: “prendam suas cabras que meu bode está solto”.
Eles falam isso com o peito cheio, rindo, como se fosse uma brincadeirinha, mas não é. Já ouvi muita gente, homens e mulheres, atenuando situações de violência contra a mulher e culpabilizando a vítima, como naqueles casos de jogadores de futebol que foram condenados por estupro, ou de meninas que são embriagadas e abusadas nos rolês.
A escritora africana Chimamanda diz em seu livro “Sejamos todos feministas” que “o modo como criamos nossos filhos homens é nocivo: nossa definição de masculinidade é muito estreita.
Abafamos a humanidade que existe nos meninos, enclausurando-os numa jaula pequena e resistente. Ensinamos que eles não podem ter medo, não podem ser fracos ou se mostrar vulneráveis, precisam esconder quem realmente são”. Ela tem toda razão, pois numa educação machista todos saem perdendo.
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