Alunos agressivos, defasagem, currículo ‘engessado’: professores encaram sensação de impotência após pandemia


Docentes sofrem com sobrecarga de trabalho e emocional ao voltar às aulas presenciais. Série especial discute os desafios do ensino depois da crise sanitária. Professora Juliana Brites olha para cartazes fixados na USP de Ribeirão Preto, SP
Reprodução/EPTV
O dia a dia de Juliana Brites é cercado por crianças e adolescentes. Professora do ensino fundamental da rede pública de Ribeirão Preto (SP), ela sente que a carga emocional dos profissionais da educação ficou ainda mais pesada após a pandemia e dos episódios de violência nas escolas.
Ela descreve os sentimentos que permeiam a volta às salas de aulas após dois anos vivendo no ambiente online.
“Agonia, angústia e ansiedade pra fazer cumprir seu papel”, resume a professora.
Esta semana, a EPTV, afiliada da TV Globo no interior de São Paulo, faz uma série de reportagens que tratam dos desafios no ambiente escolar após a pandemia. Na quinta-feira (25), a segunda edição do fórum “Diálogos da Educação” debate, principalmente, as condições socioemocionais de professores e alunos.
Após a pandemia, os professores podem até ser os mesmos, mas os estudantes voltaram bem diferentes. “Mudou tudo. Mudou o comportamento dos alunos no sentido de se socializarem. Eles perderam esse tato, esse costume de viver em sala de aula”, diz Juliana.
O sentimento dos últimos anos é de perda, explica Sérgio Kodato, psicólogo especializado em psicologia escolar e professor coordenador do grupo de pesquisa Observatório de Violência e Práticas Exemplares, da USP de Ribeirão Preto.
“O professor perdeu muito. Tanto em termos da sua autoridade em sala de aula, quanto em matéria de instrumentos, conhecimentos e preparação pedagógica. Hoje, eles não conseguem mais controlar efetivamente a sala de aula. Isso causa uma sensação de impotência”, diz Kodato.
Sérgio Kodato é coordenador do grupo de pesquisa Observatório de Violência e Práticas Exemplares, da USP de Ribeirão Preto
Reprodução/EPTV
As salas de aulas são mais do que um local de aprendizagem: são um ambiente de convivência. Lá, os estudantes compartilham amizades, companhias, desafetos, intrigas e discussões. Desde antes da pandemia, existiam diferenças entre os alunos do mesmo ano.
“Nunca foi uma sala uniforme”, garante Juliana. Mas ficou ainda mais difícil educar crianças e adolescentes. “A gente não consegue superar discordâncias como era antigamente”, revela a professora.
A agressividade dos jovens gera casos de desrespeito aos colegas e professores, bullying entre estudantes e entre amigos. As discordâncias aparentemente insuperáveis podem resultar, até mesmo, em casos de violência.
Com isso, o medo assumiu o topo de uma extensa lista de dificuldades que professores enfrentam para conseguir exercer sua profissão. Dentre os itens, estão os baixos salários, a falta de infraestrutura e as cobranças.
“É bom ser professor, mas não é fácil ser professor”, resume Juliana.
A professora Juliana Brites dá aulas pro ensino fundamental da rede pública de Ribeirão Preto, SP
Reprodução/EPTV
Currículo engessado
Para Juliana, a maior dificuldade em ser professora é a necessidade de seguir um currículo “engessado”, principalmente após a pandemia. A maioria dos estudantes voltou às salas de aula com uma defasagem na aprendizagem.
A sequência natural dos conteúdos a serem aprendidos por estudantes do ensino fundamental, segundo Juliana, já não funciona mais.
“Às vezes você está com um aluno, passando sua disciplina: ‘Oh, então vamos separar o sujeito do predicado’. ‘O que é sujeito, professora? O que é predicado?’. (…) Como o professor vai preparar uma aula pensando que ele tem que cumprir o currículo, mas o aluno está precisando voltar três passos?”, exemplifica a professora.
Os questionamentos não param por aí, pois se tornam questões pessoais. A angústia de não conseguir seguir esse currículo, algo que é cobrado tanto dos professores quanto das escolas, é frustrante.
“O problema é comigo? Será que vale a pena continuar? (…) Até quando a gente vai continuar dessa forma, cumprindo um currículo sem uma intervenção?”, questiona Juliana.
Professora da rede pública de Ribeirão Preto, Juliana Brites olha para cartaz fixado na USP
Reprodução/EPTV
Adoecimento mental
Para Juliana, a intervenção necessária seria uma política pública voltada para a saúde mental de alunos e professores.
“O aluno com problema de comportamento, de aprendizagem, reflete na gente e um professor com algum problema psicológico diminui o desempenho”, afirma.
Kodato, que trabalha há anos com saúde emocional dos professores, lista as possíveis consequências dessa sensação de impotência diante da falta de aprendizagem dos alunos.
“Vai gerar angústia, ansiedade e depressão. Síndrome do pânico, ideação suicida, e tudo isso acaba resultando em dependência química, alcoolismo, outros tipos de vícios que acabam afundando o professor ainda mais neste quadro”, explica.
Juliana vê todos os problemas citados por Kodato ao seu redor, entre colegas de profissão de Ribeirão Preto e de todo o Brasil. “Vejo muito professor sendo afastado pelo fato de estar em depressão ou ansioso, se cobrando além da conta”, pontua.
A professora Juliana Brites e o professor Sérgio Kodato em Ribeirão Preto, SP
Reprodução/EPTV
Sobrecarga
A sobrecarga de trabalho é outro fator que colabora para esse cenário. “Os salários baixos fazem com que o professor procure mais aulas para poder tapar os gastos”, afirma Juliana. Mas o expediente não termina na sala de aula: em casa, há preparações de aulas, correção de exercícios, provas e mais. Como se cuidar com uma carga tão pesada?
“Não se cuida. Ou se afasta, pra poder se cuidar, ou vai empurrando com a barriga até melhorar ou até o momento em que a gente não vê saída”, desabafa Juliana. Por isso, para ela, o acompanhamento psicológico e psiquiátrico de alunos e professores é urgente. “A gente vai esperar outra pandemia para tomar uma providência?”, questiona.
Para Kodato, isso é uma espécie de trabalho estressante e degradante.
“Afeta o sentido da profissão dele enquanto professor. Na hora que você perde o sentimento de ser professor, automaticamente você não tem mais motivação, vai esperar a sua aposentadoria, seus dias de descanso”, explica.
O psicológo e professor Sérgio Kodato
Reprodução/EPTV
Amenizar os problemas
Os anos estudando a saúde mental dos professores mostraram a Kodato a necessidade de encarar isso como uma questão coletiva. “O problema dele não é dele individual, é um problema na categoria dos professores”, afirma.
Segundo ele, sem uma política pública consistente, a categoria deve se manter unida para amenizar os efeitos desse adoecimento coletivo.
“Professores que não atribuem a si a doença, mas ao sistema social, e buscam ter uma atividade ativa política e sindical. Isso se mostrou muito mais efetivo em termos de saúde mental do que o tratamento medicamentoso”, afirma.
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