‘Mãos de garra’ e pele dura: pacientes em Ribeirão Preto, SP, contam como lidam com esclerose sistêmica


Doença não tem cura, mas tem tratamento, e afeta, principalmente, mulheres entre 40 e 60 anos. Incidência é de 100 a 150 casos a cada um milhão de pessoas. Bater palmas é algo que a aposentada Maria Ângela Ferreira Rosati, de 74 anos, não consegue fazer. As mãos dela são rígidas e se assemelham a uma garra, o que a impede de espalmá-las e uni-las.
A representante de vendas Aline Orlandi, de 41 anos, também tem mãos que parecem garras e conta que tem certa dificuldade para firmá-las no guidão da bicicleta, quando faz trilhas com um grupo de ciclistas.
As duas, que moram em Ribeirão Preto (SP), lidam com uma condição rara, mas bem característica da esclerose sistêmica, doença autoimune que provoca o espessamento da pele e acomete, em média, de 100 a 150 pessoas a cada um milhão.
Aline Orlandi, de 41 anos, de Ribeirão Preto (SP), convive com a esclerose sistêmica desde 2016
Arquivo pessoal
O nome assusta e, à princípio, pode gerar confusão. Mas a doença nada tem a ver com a esclerose múltipla, que tem origem neurológica, onde as células de defesa do organismo atacam o próprio sistema nervoso central, provocando lesões cerebrais e medulares.
Na esclerose sistêmica, o que são atacados são os vasos sanguíneos e a pele, como explica a reumatologista Cristiane Kayser, professora afiliada da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) e coordenadora da Comissão de Esclerose Sistêmica da Sociedade Brasileira de Reumatologia (SBR).
“É uma doença que se caracteriza por fibrose e espessamento, principalmente, da pele, que é a característica central, e manifestações vasculares, acometimento dos vasos sanguíneos e da microcirculação”.
Além do espessamento da pele, outra característica da doença é o fenômeno de Raynaud, uma alteração de coloração das extremidades do corpo.
É normal que mãos e pés fiquem brancos ou arroxeados quando expostos ao frio. Só que, quem convive com a esclerose sistêmica vê esta mudança de forma mais intensa e frequente (veja mais sobre o assunto abaixo).
Pele inchada e dura
O espessamento da pele foi, justamente, o que acendeu o alerta em Maria Ângela para que algo pudesse estar errado com ela. Os primeiros sintomas surgiram em 2013.
“Os pés pareciam arredondados, tinha dificuldade ao pisar, as mãos começaram a ficar mais inchadas no início do dia e diminuíam com os movimentos”.
Com a pele mais dura, vieram também as dores nas articulações. “Tinha dores nos braços, antebraços, ombros, pés e mãos. Ficavam mais evidentes durante a noite, com formigamento nas mãos e pés”.
O caso de Aline foi um pouquinho diferente, mas também teve inchaço incomum no corpo. Ela descobriu a doença em 2016, aos 35 anos, por conta de uma cirurgia para trocar a prótese de silicone.
“Tive uma prótese de silicone que rompeu e, depois da cirurgia, comecei a ter sinais de inflamação no corpo. No final do dia, ficava com o pé inchado e tinha uma coceira nas juntas. Achei que era reumatismo e procurei uma médica, que me disse que, possivelmente, a prótese foi um gatilho para ativar uma doença autoimune, mas ainda não conseguia fechar o diagnóstico, porque era tudo muito recente”.
O diagnóstico, conta a representante de vendas, veio três meses depois. Como nunca tinha ouvido falar em esclerose sistêmica, ela procurou sobre a doença na internet.
“Quando cheguei em casa, que olhei na internet, falei ‘meu Deus do céu, não é possível, ela [a médica] deve estar louca’. E ela me deu o diagnóstico e falou ‘não vai no Google, porque você só vai encontrar os piores casos'”.
A médica é Daniela Moraes, assistente de Reumatologia e Unidade de Terapia Imunológica do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto.
Ela acompanhou tanto Maria Ângela quanto Aline e revela que os casos de esclerose sistêmica são mais comuns, de fato, em mulheres.
“A esclerose sistêmica é uma doença rara, que acomete homens e mulheres, mas, principalmente mulheres. Ela pode aparecer em qualquer idade, e até mesmo em crianças, mas a maioria dos pacientes começa o quadro entre os 40 e 60 anos”.
Doença não tem cura, mas tem tratamento
A incidência, de acordo com Cristiane, é de seis casos em mulheres para cada um em homem. Apesar de não ter cura, a doença tem tratamento e o diagnóstico é feito clinicamente.
Em casos mais graves, afeta pulmão, coração, esôfago e rins. Alguns pacientes ainda precisam de transplante de medula óssea.
Foi o que aconteceu com Aline. Menos de um ano depois do diagnóstico, ela entrou para a sala de cirurgia com apenas 20% de chance de sobreviver.
“Veio de forma muito agressiva. Para se ter uma ideia, com nove meses de diagnóstico, eu já tive indicação para o transplante de medula óssea e, normalmente, essa indicação vem depois de cinco anos e tendo passado por alguns protocolos de tratamento”.
Aline Orlandi, de Ribeirão Preto (SP): esclerose sistêmica veio de forma agressiva para ela
Arquivo pessoal
Doença mexe com a autoestima dos pacientes
Mesmo com o transplante, a doença não estabilizou. A representante de vendas, que até então tentava lidar de maneira leve com a esclerose sistêmica, sentiu o baque.
“Se você me perguntar qual foi a pior parte de toda a história, foi quando eu tive a notícia de que o transplante não tinha sido eficaz. Para mim, foi pior do que quando eu tive o diagnóstico. Comecei a sentir os mesmos sintomas, rigidez nas articulações, dores, minha pele começou a endurecer demais. Levantava o braço e parecia que estava dentro de um macacão apertado. Minha virilha esticava, de tão endurecida que a minha pele foi ficando”.
Aline Orlandi, de Ribeirão Preto (SP), passou por um transplante de medula óssea por conta da esclerose sistêmica
Arquivo pessoal
Essas mudanças provocadas no corpo, típicas da esclerose sistêmica, mexem com a autoestima dos pacientes, como conta Cristiane. Principalmente das mulheres.
“Elas têm um rosto que fica modificado pelo espessamento da pele. O próprio Raynaud, com as feridas. Às vezes, elas ficam chateadas, do ponto de vista estético mesmo. É fundamental ter uma rede de apoio para poder discutir, compartilhar, tanto de familiares, quanto de outras pessoas que também convivem com a doença”.
Fenômeno de Raynaud
Maria Ângela sentiu o baque no momento do diagnóstico. E, com o emocional abalado, o fenômeno de Raynaud se tornou ainda mais evidente no caso dela.
“Foi como mergulhar em um precipício. Não chorei, não fiquei revoltada, apenas desconsolada, muito triste. Minhas mãos mudavam de cor, os dedos dos pés passavam da cor de cera para o azul, roxo e voltavam à cor de cera”.
Esta alteração, explica Daniela, ocorre na grande maioria dos pacientes com esclerose sistêmica. O Raynaud é causado por exposição ao frio e estresse emocional, mas quem tem a doença, sofre mais com o sintoma.
Segundo ela, no inverno e nos períodos de maior estresse, este sintoma é mais exuberante e causa mais desconforto nos pacientes.
A palidez, seguida de arroxeamento de mãos e pés, ocorre por conta de um “fechamento” dos vasos sanguíneos, com comprometimento temporário da circulação.
“No inverno, por exemplo, pacientes com esclerose sistêmica apresentam maior chance de terem feridas nas pontas dos dedos, devido a este comprometimento da circulação. É bom ficar claro que pessoas que se dizem ‘mais friorentas’ não têm maior risco de ter esclerose sistêmica”.
Fenômeno de Raynaud, que consiste na mudança de coloração de mãos e pés, é um dos principais sintomas da esclerose sistêmica
Arquivo pessoal
O alerta é pertinente. O Fenômeno de Raynaud pode aparecer em pessoas saudáveis, principalmente, mulheres jovens, mas é a intensidade em que ele acontece que vai dizer se alguma coisa mais séria pode estar por trás da mudança na coloração da pele. O ideal, nestes casos, é procurar um médico para avaliação.
“Ele pode ser o aviso inicial de várias doenças, principalmente, doenças reumáticas autoimunes, como a esclerose sistêmica, o lúpus, as vasculites e, por este motivo, deve ser investigado”, diz Daniela.
Sem forças para o básico do dia a dia
Por comprometer a pele, a esclerose sistêmica acaba afetando as tarefas básicas do dia a dia. Dirigir, vestir uma roupa, abaixar para pegar algo do chão pode ser impossível, em alguns casos.
“Não tinha força para abrir uma torneira ou o adoçante. Meu marido, sempre solidário e disponível, me ajudava a levar a colher com a sopa até a boca”, conta Maria Ângela.
Aline também contou com ajuda da família nos períodos mais difíceis. Como ela ficou mais de 30 dias internada por conta do transplante, os movimentos ficaram ainda mais limitados.
“Não conseguia agachar para pegar uma coisa debaixo da mesa, a gente não dobra, vai ficando tudo duro. Não conseguia vestir uma roupa sozinha, não conseguia abotoar um botão”.
Ao lado dela, sempre estiveram o marido e o casal de filhos, hoje com 16 e 14 anos.
Tratamento e remissão
Uma vez diagnosticada, a doença é tratada com medicamentos e acompanhamento médico. O processo para identificá-la envolve realização de exames, como o FAN (Fator Antinuclear) e a Capilaroscopia (que avalia os vasinhos das mãos). Os resultados saem em uma semana.
“O tratamento é com medicamentos, você consegue reduzir a intensidade dos sintomas e controlar as manifestações, como, por exemplo, o fenômeno de Raynauld. A doença não vai sumir, mas você consegue controlar, às vezes, de forma bem importante com tratamento”, diz Cristiane.
Após cinco anos sem piora, o paciente entra em remissão (período em que uma doença permanece sob controle). Hoje, Maria Ângela e Aline estão nesta fase do tratamento.
“Reconquistar os movimentos que eu perdi foi algo que exigiu muita dedicação. Fiz reabilitação em pilates, era um pouquinho cada dia. Não conseguia levantar os meus braços totalmente, levantava só até na altura do ombro e falava ‘um dia, ainda vou dar um glória a Deus decente’. Hoje eu consigo fazer isso. Minhas mãos vão lá pro alto, hoje eu faço tudo”, comemora Aline.
Após seis anos de diagnóstico, Aline Orlandi, de 41 anos, de Ribeirão Preto (SP), tem a esclerose sistêmica controlada
Arquivo pessoal
Maria Ângela está sem piora da doença há seis anos e deve passar por exames em breve. “Tenho fé enorme que não terei mais problemas”.
Ela ainda faz um alerta para quem possa ter sintomas da doença: procure um reumatologista.
“Quanto mais cedo o diagnóstico, maior a chance de o tratamento dar certo. É importante incorporar dentro de si que a doença não pode ser vencida, mas pode ser muito mais branda do que se pensa. Dá para se conviver perfeitamente com ela, sem qualquer interferência na rotina do dia-a-dia. Pensamentos positivos ajudam”.
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