‘Nunca vou ser a mãe deles’, diz mulher que assumiu criação dos sobrinhos após irmã ser vítima de feminicídio em Ribeirão Preto, SP


Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 aponta que 2,3 mil ficaram órfãos em 2021 em razão de crimes contra mulheres. Em Ribeirão Preto, SP, Luana dos Santos lamenta a morte da irmã, Fabrícia. Mais de 2 mil crianças perdem a mãe por violência doméstica
As marcas no corpo do sobrinho da auxiliar de cabeleireira Luana dos Santos poderiam ser confundidas com as causadas por uma queda corriqueira de crianças brincando. As cicatrizes, no entanto, são de tiros disparados pelo pai dele, quando atacava a mãe, Fabrícia Carneiro Santos, de 24 anos, em Ribeirão Preto (SP). A jovem havia terminado o relacionamento e o ex não aceitava a decisão.
Fabrícia morreu baleada e o ex se matou em seguida. O papel de tia de Luana deu lugar ao de mãe. Ela passou a cuidar do filho caçula e da mais velha da irmã, mas sente que nunca poderá substituí-la.
“Eu vejo a tristeza neles, principalmente na mais velha. Hoje em dia, ela é muito calada, muito encolhida. Eu tento conversar, mas não é a mesma coisa. Nunca vou ser a mãe deles”, lamenta.
Marcas nos braços de criança atingida por tiros durante ataque à mãe dele em Ribeirão Preto, SP
Reprodução/EPTV
Órfãos no Brasil
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 registra 1.341 casos de feminicídio no Brasil em 2021. Os episódios de violência contra mulheres resultaram em 2,3 mil órfãos.
A advogada Amanda Bessoni Boudoux Salgado, que é pesquisadora do feminicídio, diz que as autoridades precisam aprimorar políticas públicas de acolhimento aos menores de idade.
“Por exemplo, o empenho de recursos para implementação de mecanismos de abrigo, o estimulo às denúncias e as facilidades na busca de assistência e a orientação dos atores no sistema de justiça para atendimento das mulheres e a investigação dos casos com perspectiva de gênero”, diz.
Luana dos Santos lamenta morte da irmã por feminicídio em Ribeirão Preto, SP
Reprodução/EPTV
A rede de apoio é importante para ajudar a superar os traumas psicológicos que marcam a vida, principalmente de quem está nos primeiros anos da infância.
“O luto de uma criança por feminicídio não é a regra, mas, em geral, essa mulher foi morta pelo companheiro, na maioria das vezes. Essa criança perde a mãe e ela perde a outra referência de apoio, de família, então eu diria que seria necessário um apoio à criança e para quem for a rede de apoio dela, um apoio profissional”, diz a psicóloga Juliana Vendrúsculo.
Violência só cresce
Dados da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra Mulher em Ribeirão Preto mostram que, em 2021, a Justiça concedeu 1.731 medidas protetivas de urgência. O número subiu para 1.967 em 2022 e, até a primeira quinzena de abril deste ano, foram 747 decisões.
Fabrícia Carneiro Santos foi vítima de feminicídio aos 24 anos em Ribeirão Preto, SP
Reprodução/EPTV
O juiz Caio César Melluso afirma que o problema está no relaxamento da medida protetiva pelas vítimas ou na descrença da força dela.
“O ciclo da violência é draconiano, ele é uma espiral. Ele começa com ‘oi, meu amor, está tudo bem’, aí ele vai e passa para um tapa na cara. Depois ele volta com flores e pede perdão, promete nunca mais fazer isso. Ela aceita e aí ele passa para um murro, perde perdão. Passa a uma agressão mais violenta e isso vai chegar no feminicídio”, afirma.
Luana afirma que a irmã, Fabrícia, conversava muito sobre os episódios de violência doméstica aos quais era submetida.
“Eu queria que ela crescesse, ela tinha o sonho de abrir o próprio salãozinho dela. A gente estava pensando em alugar algo aqui perto, mas, infelizmente, por querer ter uma vida, ficou sem ela. Quando ela tentou ser realmente o que era, tipo assim, se arrumar, se sentir mulher, isso, para ele, foi um absurdo”, diz.
Irmãos em Ribeirão Preto, SP, ficaram órfãos por causa de violência contra a mulher
Reprodução/EPTV
Sobrevivência apesar da dor
Em 1981, Liliane de Grammont tinha dois anos quando a mãe, Eliane de Grammont, foi morta a tiros pelo ex-marido dentro de um bar em São Paulo (SP). O caso teve grande repercussão. O cantor Lindomar Castilho, pai de Liliane, conhecido na época como o “rei do bolero”, foi condenado a 12 anos de prisão pelo crime.
“Quando você perde a sua mãe, você ganha várias mães, só que ao mesmo tempo você não tem nenhuma. Isso é muito confuso na cabeça de uma criança, fica difícil de saber onde está o seu apoio. Aquela tristeza ainda fica ali, a plenitude da felicidade ela quase que não existe. É um trabalho de cura incessante para o resto da vida”, diz Liliane.
Liliane de Grammont perdeu a mãe, morta pelo pai dela, quando tinha 2 anos
Reprodução/EPTV
Hoje, aos 43 anos, Liliane é psicóloga e atua no enfrentamento à violência contra a mulher. Apesar do luto da mãe e da prisão do pai, ela acredita que todos têm direito à felicidade, mesmo que as feridas não tenham cicatrizado.
“Passam anos e anos e isso fica ali num cantinho do seu coração. Ninguém sai de uma situação traumática sem o amor. Essa criança precisa em algum momento enxergar o futuro. Eu até me emociono porque eu acho que esse é o grande diferencial, você de alguma maneira essas mãos de fora gerarem para essa criança a esperança de um futuro.”
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